COMENTÁRIOS SOBRE A RESOLUÇÃO DAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS
PARA O ENSINO MÉDIO
A primeira impressão que se tem
pela leitura do projeto de resolução é que “a educação no Brasil continua ampla
para além da conta”. Em seu texto Naufrágio Curricular (ver apêndice ao final),
o economista Cláudio de Moura Castro transmite uma visão bastante lúcida sobre
o excesso curricular que a escola brasileira comete e a triste realidade que
vivemos de uma população que aprende tudo, mas não sabe nada...
No projeto, a palavra “família”
aparece três vezes, de forma bastante coerente. A primeira menção trata o
ensino médio como obrigação da família. A segunda preconiza que a proposta
pedagógica da escola deve estar disponível para conhecimento da família – “dar-lhe
publicidade (...) às famílias” – e a terceira menção impõe à família o
acompanhamento do desempenho escolar de seus filhos, nada mais justo.
Por outro lado, embora tratada no
texto, a questão da família extrapola em muito a esfera educacional. Apesar de
esforços ainda pouco visíveis no sentido contrário, a sociedade está vivendo
uma realidade voltada para a produção de riqueza como prioridade, esquecendo-se
dos laços familiares como fundamento que dá (ou deveria dar) equilíbrio às
pessoas. O modelo macroeconômico capitalista produz riqueza, de fato, porém
apresenta um subproduto altamente nocivo aos povos: a concentração de riqueza.
Nessa relação entre a escola e o
mercado de trabalho, enquanto a primeira se propõe a “ensinar demais”, para, ao
final, não ensinar nada, o mercado de trabalho exige cada vez mais o
desenvolvimento de competências – de cunho técnico, de liderança, de gestão. O
problema é que esse acúmulo de competências para o mercado de trabalho
ultrapassa os muros da escola, seja pelos limites temporais, seja pelo
despreparo dos docentes, de modo geral, seja pelo aumento crescente de
complexidade que envolve os problemas humanos.
A exigência de formação de mais e
mais competências para a vida resulta na necessidade do aprendizado contínuo,
estendendo a vida “escolar” – daqueles que podem pagar – para dentro da vida
familiar. Em outras palavras, podemos estar caminhando para uma sociedade de
ricos sem família e de pobres sem trabalho – com a robotização dos ambientes de
trabalho, as profissões mecanizadas tendem a sumir.
Frente a essa realidade, coloca-se
a questão crucial: o que devemos ensinar aos nossos jovens? Com essa pergunta
em mente, seguimos para uma breve análise do projeto de resolução, cujo
objetivo é atualizar as diretrizes curriculares nacionais (DCN) para o ensino
médio (EM).
As DCN formam a base nacional comum
curricular (BNCC), responsável por orientar a organização, a articulação, o
desenvolvimento e a avaliação das propostas pedagógicas de todas as redes de
ensino brasileiras.
Se há o lado louvável pelo
cumprimento do dever do Estado em organizar o ensino, há também excessos em querer
que todos aprendam tudo, quando, na verdade, a sociedade prescinde de cidadãos
com esse perfil. Não precisamos que um médico conheça engenharia, não
precisamos que um advogado entenda de agronomia, pelo menos não no sentido
amplo. Não há dúvida de que uma formação abrangente é interessante do ponto de
vista do sujeito, mas não faz sentido esperar que todas as pessoas dominem
todos os assuntos.
A postura do Estado, de querer
ensinar tudo a todos, se manifesta de maneira sutil quando o dispositivo legal
deixa à cargo da BNCC a definição de “direitos de aprendizagem” – inserção do
Artigo 35-A, lei 13.415/2017, sobre a lei 9.394/1996. Parece haver uma
interpretação que causa uma inversão de valores: o direito de aprender torna-se
o dever de aprender (de aprender tudo!).
Os princípios descritos no Artigo
5°, ainda que certamente primando pela manutenção de direitos do aluno, contêm
afirmações filosoficamente importantes, mas que dependem de uma ruptura social
que somente poderá ocorrer no longo prazo, quando o aluno puder levar para casa
os valores, a mudança que a sociedade precisa, transformando sua família e seu
ambiente de convivência. Todavia, não podemos deixar que essa transformação de
longo prazo se traduza em currículos escolares infactíveis.
Mais ainda, enquanto a geração de
riqueza continuar concorrendo com a manutenção da família, a escola, por si só,
muito provavelmente não conseguirá dar conta dessa transformação social.
No Artigo 6°, o texto faz menção à
indissociabilidade entre educação e prática social, assim como entre teoria e
prática, para, mais adiante, fazer o gancho com a aprendizagem e a qualificação
profissionais. Resta saber se as escolas estarão aptas, ainda no EM, a se
aproximar do mercado de trabalho real, a expor seus alunos ao processo
industrial ou de gestão empresarial, ou se o que se espera é uma “prática
distanciada”, digamos... uma “prática teórica” – alunos aprendendo profissões
por meio de filmes?
Não é demais destacar que as
mudanças no mercado de trabalho vêm ocorrendo a passos exponenciais,
visivelmente em função da agregação de novas tecnologias aos processos de
produção e, particularmente, das inovações e disrupções próprias da era
digital. Embora possa ajudar, a simples extensão da carga horária e inserção de
conhecimentos no currículo não são suficientes para resolver essa questão. As
escolas precisam ter seu corpo docente preparado, assim como devem estar
preparadas fisicamente.
A propósito do currículo, o Artigo
7° o descreve como proposta que se expressa em torno de conhecimentos
relevantes, porém a obrigação de tudo aprender é incompatível com um ensino
direcionado para as afinidades do aluno, atrasando o seu investimento em
aprender aquilo que ele realmente gosta. E, claro, entre os 13 e os 15 anos de
idade, muitos alunos já puderam perceber suas tendências.
Nessa idade, o ensino de
disciplinas como física ou química para alunos que tendem para as ciências
humanas é um verdadeiro massacre. Um massacre que não produz resultados senão
simplesmente o de ter que enfrentar o funil de entrada na universidade, onde
novamente esse conhecimento se tornará irrelevante para esses sujeitos. Os
itinerários formativos seriam suficientes para direcionar os alunos para suas
áreas de maior afinidade? Estariam limitados apenas ao ensino técnico ou a
escolas com viés técnico?
Não está claro se o elaborador do
projeto de resolução tem a plena consciência das implicações que os contrastes
entre uma formação básica geral e os diferentes itinerários formativos aportam
aos projetos pedagógicos das escolas e se essas estariam preparadas para essa
empreitada.
Por último, cabe destacar que o EM
não pode ser a cura para todos os males da escola. A cura deve,
obrigatoriamente, estar nos primeiros anos de ensino, sob o risco de
“iniciarmos o tratamento após instalada a doença”. Em apenas três anos de
ensino médio, é quase impossível se aprofundar de maneira equânime em todas as
áreas de conhecimento. Também vale reforçar que a entrada em vigor do projeto
de resolução implica ter em mão o planejamento de ações que deem à escola e ao
docente plenas condições de garantir o seu sucesso.
Pai de alunos, Estatístico e Consultor em Avaliação
Educacional.
APÊNDICE
Naufrágio curricular
Por: Cláudio de Moura Castro
Fonte: Revista Veja, 29 de maio de 2002.
O rei Gustavo Adolfo da Suécia, para
defender-se de seus inimigos, decidiu criar o mais poderoso navio de guerra.
Importou os melhores construtores navais, e os cofres públicos foram sangrados
para produzir um barco invencível. Mas o rei queria ainda mais invencível e
mandou instalar um deque superior, com mais peças de artilharia. O navio com
nome Vasa, enfunou as velas em 1628 e, sob um vento suave, singrou a baía
de Estocolmo. Mas, subitamente, apenas deixando o porto, vira e afunda. Era
instável, pelo excesso de canhões e pela falta de lastro.
Nossos doutos educadores e autores de
livros didáticos criam currículos invencíveis. Tudo que pode ser importante é
nele anexado. E, como há cada vez mais coisas importantes, o currículo vai
ficando mais pesado e mais invencível. Como o Vasa, os alunos afundam sob
o peso de tantos conhecimentos e de tantas informações preciosas. E, nas
profundezas ignotas dos oceanos intelectuais, naufraga sua educação.
Os japoneses, contados dentre os
campeões mundiais em educação, fazem seus currículos para que todos os alunos
normais entendam tudo. O MEC até que enxugou os nossos, mas, no trajeto até a
sala de aula, o terreno é minado. Para autores e professores, é um desdouro que
até mesmo os alunos geniais possam entender tudo que se ensina. Ainda não foi
enterrado o último professor que se vangloria de só dar 10 quem sabe mais que
ele.
O preço de um currículo entulhado de
informações – que isoladamente podem ser úteis e até interessantes – é que não
sobra tempo para ser educado. É preciso pisar no acelerador para conseguir
ouvir falar de tudo. Como não há tempo para aprender, decora-se. Entre reis de
França, afluentes do Amazonas e derivados do carbono, acumulam-se inutilidades
memorizadas. E tem a mesma sina as leis, as teorias os princípios científicos,
que ajudariam a entender o mundo, se fossem entendidos.
Richard Feynman, Prêmio Nobel de Física,
veio ao Brasil em 1950 para dar um curso para professores. Ficou estarrecido e
anotou em seu livro de memórias: “ Os estudantes tinham decorado tudo, mas não
sabiam o significado de nada. (…) Nada tinha sido traduzido para palavras com
significado (…) Eles podiam passar nos exames e ‘aprender’ todas aquelas
coisas, e não saber nada”. Após meio século, continuamos na mesma, sabendo as
fórmulas e incapazes de usá-las.
David Perkins (no livro Smart Schools) nos diz claramente que,
se não entendermos o aprendido, ele não servirá para nada. Aprendemos a
pensar com e pensar sobre o que estamos estudando. Aprender
é uma consequência de refletir a respeito do que está sendo apresentado em
aula. À visão convencional, adquirimos um conhecimento e depois aprendemos a usá-lo.
Trágico engano. Aprendemos somente pelo ato de pensar no que estamos
aprendendo. E o conhecimento só é realmente adquirido quando podemos pensar
usando o que foi aprendido. Mas o nosso Vasa curricular não deixa
tempo para que isto aconteça. Resta aos alunos a lembrança de haver ouvido
falar de muitos fatos e muitas teorias. O preço da sobrecarga de informação é a
falta de profundidade, é a incapacidade de usar o que parecia ter sido
aprendido, mas que era um conhecimento inerte, inútil e que não pode ser
mobilizado para entender o mundo e resolver problemas.
É preciso coragem para dizer não à
avalanche curricular. E muitas vezes um professor individualmente não pode fazê-lo,
pois há provas e maratonas curriculares a ser cumpridas a ferro e fogo. Mas é
aqui que se define o futuro de um país. Queremos continuar com uma população
que ouviu falar de todas as teorias, mas não sabe usar nenhuma? Que recite os
ossos do pé e centenas de nomes da taxonomia de Lineu? Ou queremos que entendam
o manual de instrução? Tudo está na internet. Mas decidir o que buscar e usar
bem o que encontrou é para aqueles que aprenderam a articular seu raciocínio.
Nossos alunos continuarão tendo o mesmo destino do Vasa, com currículos
invencíveis e tendo sua educação afundada pelo excesso de peso?
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